segunda-feira, 8 de setembro de 2025
sábado, 6 de setembro de 2025
Os olhos que brilham no escuro
O brilho sedutor dos neons, misturado à névoa avermelhada que baixara de vez,
impedia-me de enxergar a ponta dos elevados da avenida Alfa 6,
no coração da metrópole.
Sempre que chegava à entrada da Companhia Luther,
olhava para cima.
Era aquela velha sensação de estar sendo observado do centésimo andar.
Na porta da companhia, garotas sensuais
— holográficas e humanas — disputavam clientes quase a tapas.
É, as coisas estavam piorando para as meninas.
— Oi, aí, rola um programa hoje?
— disse uma delas, sob o olhar enciumado de outra.
Como sempre, as cumprimentei com um sorriso e subi.
O chefe já estava a minha espera.
Aqui narro minha última missão de caçador pela Companhia Luther.
Para quem passava apressado pelo distrito 12, era apenas mais uma noite qualquer.
Exceto pelo frio cortante do inverno e pelos robôs em batida no mercado
paralelo de anfetamina sintética.
Mas eu estava ali a trabalho.
Caçava pistas sutis — poeira nos sapatos de homens de sobretudos longos,
rostos ocultos por máscaras que escondiam identidades.
Em meio aos transeuntes, meu antílope se camuflava,
mas eu estava atento. Não o perderia por nada.
Ao entrar em um beco sujo, percebi que não estava só.
Além de ratos revirando o lixo, uma sombra me acompanhava.
Segui atento. Cruzei com alguns viciados que vagavam como espectros;
do outro lado, prostitutas baratas riam da própria miséria em volta de uma fogueira.
Logo percebi: o andar da figura era mecânico demais para ser humano.
Fingi não notar. Já não havia mais ninguém,
apenas eu e aquela sobra grudada atrás.
Passava das duas da manhã.
Dobrei uma esquina,
onde avistei um letreiro em vermelho quase queimado:
“Bugigangas do Século XXI — leve a sua.”
Nunca entendi por que alguém ainda comprava aquelas porcarias inúteis.
Os passos atrás de mim se aceleraram, e meu coração também.
O clima azedava.
Virei-me num estalo.
O vulto se escondeu nas sombras,
talvez já sabendo que eu o percebera.
Provavelmente era um modelo antigo, série C-1984.
Não sei como ainda estava na ativa.
Um traste, comparado aos novos da linha Thider 2.2C
— bem mais espertos e letais.
O laser assobiou no ar, raspando meu ombro,
antes que eu me atirasse dentro de uma lixeira enferrujada,
fedorenta de peixe podre.
Na lixeira estava uma réplica de gato preto.
Mas que rápido, o animal escalou a parede e desapareceu.
O velho modelo subia num cano,
tentando alcançar um apartamento de vidraças quebradas.
Pingos caíam sobre mim. Odeio esses lugares!
Ele buscava posição para atirar de cima.
Mas não teve chance. Já estava em minha mira. O laser cortou o escuro.
Seu corpo despencou, e o líquido azul se espalhou pelo concreto,
misturando-se ao lixo da calçada.
Não sei por quê, mas segundos depois de exterminar
o replicante senti um arrependimento inexplicável.
Algo familiar vinha daqueles olhos antes de se apagarem.
Mas é para isso que sou pago: eliminar os modelos rebeldes.
Seguindo o protocolo, arranquei seu olho direito,
conectei o escâner e iniciei a leitura da memória.
Surpresa: por que diabos a corporação mandaria um replicante atrás de mim?
Sim, aquele modelo, por mais antigo, era um caçador
— programado para me seguir.
Antes que me levantasse,
deparei-me com um par de pernas sob um vestido vermelho.
Rose.
Mas o que ela fazia naquele maldito beco?
Não era o ponto dela, muito longe das lojas de sex shop de bonecas e dos cyber cafés da rua 10.
Antes que eu dissesse algo, acendeu meu cigarro com o isqueiro.
— Oi, bonitão! O que faz nessas quebradas?
— disse com aquele sorriso perigoso e doce ao mesmo tempo, que sempre mexia comigo.
— Trabalhando, querida. E você, o que faz aqui? — retruquei, tragando a fumaça.
— Também trabalhando, bonitão. Mudei de ponto, a concorrência anda grande.
— Entendo, Rose, mas aqui é perigoso para uma garota.
— Sei me cuidar, garotão! — respondeu, ajeitando meus cabelos.
Passava das três da manhã.
Ofereci uma carona, mas havia esquecido onde estacionara o auto X.
Pegamos um táxi, dirigido por um velho oriental de óculos pequenos, chapéu e barba.
No painel, um origami que me chamou atenção.
Pelo retrovisor, o velho nos observava em silêncio, até que quebrou o gelo:
— É uma fênix.
— Fênix? — perguntei, notando os olhos meigos de Rose sobre mim.
— O origami que tanto te atrai, senhor. Eu construo coisas, dou vida a elas.
Vinte minutos depois, o táxi nos deixou numa esquina
próxima ao meu apartamento.
Rose subiu comigo. Enquanto eu tomava banho, ela fez café.
Na sala, perguntei se tinha visto algo estranho no beco.
Ela não quis se alongar, apenas comentou sobre clientes
engravatados em busca de aventura longe das esposas.
No fundo, não queria detalhes.
Não que fosse ciúme, mas ela adorava me torturar.
A noite terminou como tantas outras: intensa, entre eu e Rose.
Sempre havia algo além de um simples ficar.
De manhã, acordei com a luz queimando o rosto
e a fumaça de cigarro ainda subindo do cinzeiro.
O quarto estava revirado. A janela, escancarada.
A vidraça, estilhaçada.
Alguém havia entrado enquanto eu dormia com Rose.
Sumira a minha única lembrança:
a foto do orfanato onde um dia minha mãe me deixara.
Estranho — nunca lembro da fase dela.
Dizem que foi trauma.
Prefiro não pensar nisso, pois tudo é vago...
Pela altura do apartamento, só podia ter sido um replicante.
Rose também havia desaparecido.
Na boca, o gosto amargo denunciava: eu tinha sido drogado.
Ainda tonto, vesti a calça e o blusão e desci as escadas.
A cada passo, a capa do casaco se abria como asas negras de um Batman decadente.
Lá fora, a chuva ácida caía.
Comprei um guarda-chuva.
Sem lembrar onde deixara o maldito veículo,
peguei outro táxi rumo à Companhia Luther.
O segurança da entrada era novato, com cara de poucos amigos.
Estranho. Onde estavam os antigos funcionários?
Passei pelo leitor de íris e entrei no elevador.
Logo estava nos corredores centrais. Muitas caras novas. Será que o chefe trocara todo o quadro?
Assim que pisei no escritório, um robô encerador cruzou meu caminho.
A poltrona do chefe estava virada. Fui direto:
— Por que um replicante atrás de mim?
Silêncio...
A poltrona girou.
Quase caí de costas.
Não era González.
Era Rose.
— Vejo a surpresa estampada na sua cara, bonitão
— disse, cruzando as pernas com aquele poder habitual.
— Onde está González? — perguntei seco.
— Não existe González. — Sorriu fria.
— Quero dizer… até ontem existia.
Mas não deixamos rastros, bonitão.
Três brutamontes entraram. Não eram humanos.
— Mudança de planos, bonitão!
Afastei-me em direção à janela.
Não pretendia pular, mas escalar era uma opção.
Os olhos de Rose ardiam como fogo.
Eu conhecia aquele olhar cibernético.
Com força sobre-humana, lançou a cadeira contra mim.
Esquivei-me, derrubando dois brutamontes e depois o terceiro.
O cheiro insuportável de circuitos queimados tomou a sala.
Rose chamou reforços; passos já ecoavam no corredor,
enquanto o alarme disparava.
Três anos enganado. Três anos envolvido com uma máquina.
E pensar que estava apaixonado por Rose.
Ela se aproximou, os lábios quase encostando nos meus.
— Femme fatale… — murmurei. — Não dessa vez, Rose.
Afastei-me até a janela.
Lá embaixo, a cidade era um formigueiro.
Eu estava na mira da arma de Rose. A minha,
caída ao chão. Talvez fosse o fim.
Mas ela não atirou.
Ou pensou demais. Apenas me olhou — um olhar quase humano.
Saltei pela janela. Escalei como um gato,
ainda vendo Rose e outros replicantes invadindo a sala.
Por sorte, ou esperteza, atingi uma janela ao lado e entrei por ela.
Hoje vivo como um anônimo em algum canto dessa maldita metrópole.
Continuo meu trabalho de lobo solitário, caçando replicantes pela noite.
Também sei que me caçam. Faz parte do jogo.
A luta é inglória — mas não deixarei que as máquinas vençam.
Na manhã seguinte, acordei com a cabeça girando.
Talvez tivesse exagerado na bebida.
Estranho: havia algo descansando sobre meu peito. Um origami.
O mesmo pássaro em papel branco que estava no painel do táxi do velho oriental.
Quem o deixara ali? Rose? O taxista?
Fato é que não me eliminaram. Por quê?
Aquele enigma aguçava minha mente de investigador.
Eu tentava juntar as peças…
E a frase do exótico taxista ecoava:
“Eu construo coisas, dou vida a elas.”
Ainda me pergunto por que Rose não me matou naquela noite.
Será que ainda a verei?
Talvez não seja uma boa ideia.
Por mais que eu queira.
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Os olhos que brilham no escuro
por ChicosBandRabiscando
domingo, 31 de agosto de 2025
Olhos mecânicos
Por que todo esse mal-estar?
Na alma, um saudosismo,
vago... impreciso.
O conhecimento é ambíguo,
é um grande perigo!
De minha parte, só restam aforismos:
o pessimismo!
A liberdade é um pecado,
o sistema nos fez viciados,
há câmeras em todos os lados.
Não existe mais espaço para o cansaço:
ansiedade virou sinônimo de produtividade.
Fadigados, seguimos condicionados.....
A vigilância é permanente.
O abismo faz parte do presente,
tudo está a um passo...
Criamos o pior dos fracassos!
Não há mais opção,
cada espaço é uma prisão.
Não ouse apertar o modo avião!
Mostre a sua melhor versão.
Poderia ser uma comédia,
uma página da Wikipédia.
Mas é tragédia!
Perdemos essa guerra...
Ovelhas elétricas não podem ser desligadas:
bem alimentadas, seguem conectadas
ao fluxo dos dados....
O produto é passivo,
é um mundo líquido,
vazio,
cheio de ruídos.
Somos todos consumidos.
É mais que metáfora,
é uma metástase.
Faltam-me frases...
Sobram Narcisos.
A miopia nos levou à distopia.
Sem direção,
caminhamos para a autodestruição.
No fundo, sabíamos disso,
adeus, Paraíso!
Os olhos mecânicos não piscam.
Caíram todas as fronteiras,
o sistema expandiu suas teias...
O sintético corre nas veias!
Só há um país:
a “Matriz”!
Quem é que ainda é feliz?
É ruim viver a monotonia,
1984 noites e dias,
eles nos vigiam!
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Olhos mecânicos
ChicosBandRabiscando